quinta-feira, agosto 24, 2017

se calhar, devia ter-lhe chamado Gustavo

Quando eu nasci, em 1964, um observador ainda jovem, cosmopolita e informado, poderia torcer o nariz aos manuais da Porto Editora. Pôr meninas em tarefas domésticas, enquanto os rapazes surgiam em contexto de ar livre, quase aventura, já podia dar a ideia do traço dominante da situação dos géneros no país. Mas pronto, foi há 53 anos, e não eram muitos -- não só cá pela pátria egrégia, como, presumo, na generalidade dos países industrializados -- os que teriam essa visão que hoje nos parece comezinha. A circunstância de, em 2017, uma chancela com as responsabilidades da Porto Editora editar um produto com a conformação mental mediana de 1964, revela um despreparo inaceitável. Ganham muitos milhões para continuarem a ser tão provincianos. Portanto, concordo com a supressão dos livros do circuito pré-escolar, não por qualquer espécie de censura, mas por manifesta desadequação pedagógica.
Outra coisa -- outra coisa, é a histeria imbecil dos idiotas do costume, como a questão das cores, ou com a aversão aos 'piratas' e às 'princesas' (faço ideia dos miasmas saídos das alfurjas do facebook...)
Eu, que tenho quatro filhos, três raparigas e um rapaz, confesso que a este nunca ofereci uma barbie -- se houver algum pai que tenha oferecido ao filho uma boneca com vestidinhos para brincar, que se acuse, pois pode ser um caso para a Comissão de Protecção de Menores.
A todos, porém, dei carrinhos, e com uma delas, particularmente entusiasta (de resto, uma miúda giríssima, desportista federada internacional, aluna do quadro de mérito) recuei muitas vezes várias décadas com o que restava dos meus Matchbox, Corgi Toys, Solido ou Majorette, em longas corridas pelo corredor da casa ou no terraço do jardim.
Se calhar, devia ter-lhe chamado Gustavo... Mas vou redimir-me, e será o nome que darei a uma eventual próxima filha; ao contrário, se for rapaz, vai chamar-se Maria de Lourdes. Finalmente, para fugir ao estereotipo nefando do azul e do cor-de-rosa, só vestirá lilás.

P.S. Talvez esteja a exagerar. Optarei antes por Gustova, ou Mário de Lourdes -- assim mesmo, em neutral equilíbrio, para não traumatizar.
P.S. 2, e agora a sério: sei que são assuntos diferentes, mas para os inquisidores apressados do costume, e para quem não me conhece, faço questão de dizer que achei notabilíssima a forma digna e elevada como a secretária de Estado Graça Fonseca resolveu dar conhecimento público da sua condição homossexual, exercendo uma pedagogia cívica pelo exemplo. Com pessoas e atitudes destas, a causa justa da não discriminação credibiliza-se.


7 comentários:

PNLima disse...

Toda a polémica à volta dos meninos e meninas deu-me mesmo vontade de ir buscar as páginas do Cavaleiro Andante dedicadas especificamente a cada género.
Não será um livro, por muito antiquada que seja a ideia base, que vai mudar o que cada tem vontade de fazer. Sei que o meu pai sempre sonhou ter um rapaz, mas sairam-lhe três raparigas na calha. Aprendi coisas com ele, de "rapaz", que hoje aplico na vida enquanto "rapariga" (já vintage)!
Viva a diversidade!

APS disse...

Tenho, para mim, que muitos dos "exotismos puristas" da nossa época radicam naquilo que eu denomino, à falta de melhor classificação, de: gentilezas da democracia.
Os burkinis, os escrúpulos sobre os géneros, os "coming out", bem como outros puritanismos ideológicos, originam-se em formas rasteiras de pensar a realidade dos nossos dias.
Em suma, concordo com quase tudo aquilo que, aqui, escreveu.
Uma boa tarde (açoriana?)!

sincera-mente disse...

Vejo que regressa (finalmente!) e em excelente forma, e folgo com isso, porque estou farto de andar para aqui a espreitar e... nada!
Quanto ao seu, como sempre bem condimentado, 'post', assino por baixo, excepto numa coisa - o aplauso às retirada dos livrinhos do circuito comercial (penso que não se trata do circuito pedagógico). Sobretudo por ter resultado de uma pressão vinda de uma entidade creio que governamental, uma comissão qualquer, cujo nome não recordo.
Faz-me muita comichão isto de banir da vista dos demais o que quer que seja em nome de valores culturais, ideológicos, ou quejandos (obviamente, salvaguardando aqueles casos extremos que todos conhecemos, de divulgação de ideologias fascistas, ódio racial, etc). Afinal, toda a gente ergue bandeiras pela igualdade plena, pelo fim das discriminações, pela liberdade de pensamento etc, etc. Muito bem! Mas, ao mesmo tempo e com a mesma naturalidade, manda-se, ou aconselha-se a retirar de circulação um livro porque fere a mentalidade tida como correcta. E se eu, comum e pacato cidadão, quiser, no uso da minha liberdade, ter acesso aos tais livrinhos, comprando-os, nem que seja para formular a minha opinião? Com que direito alguém me diz 'Não podes comprar; isso não presta; ou isso está errado!'?

Maria Eu disse...

Aplaudo! Os histerismo em volta da questão, ao invés de exercerem uma função pedagógica, só servem para provocar reacções absolutamente primárias e pouco racionais.

Boa tarde, Ricardo. :)

R. disse...

Paula, é verdade, o «Cavaleiro Andante», do Adolfo Simões Müller, Já a grande revista que lhe sucedeu, «Tintin», orientada por Dinis Machado e Vasco Granja, iniciada em 1967, não fazia qualquer distinção de género. E se hoje vasculharmos o correio dos leitores (tenho lá duas cartas...), verificamos que muitas raparigas liam a revista, contrariando um pouco aquela ideia que ainda hoje prevalece, de que a BD é uma coisa mais para a rapazes. Mas é como diz, viva!

APS, uma gentileza da democracia (bem visto), 'gentileza' que acaba por estar na sua essência. (Açoriano, não. Cascaense - e também para si),

Bem-haja pelo interesse, caro Fernando! Percebo e até concordo, mas creio que se trata de uma recomendação para o circuito escolar.

Sim, Maria, estamos no domínio do 'activismo', que não é necessariamente mau, embora suscite, e muitas vezes bem, activismo oposto. Boa tarde para si também

sincera-mente disse...

Viu o Governo Sombra?
Parece que alguém emprenhou de ouvido...
Sem dúvida que anda por aí uma onda estranha...

R. disse...

vi, e vou escrever a propósito