terça-feira, novembro 07, 2017

uma terra sem amos nem apparatchiks

Já não sei quantas vezes aqui escrevi que a melhor vacina que tive para a prevenção do bolchevismo e o comunismo soviético (há outros comunismos) foi a leitura, ainda muito jovem, do Soljenitsin. O Marc Ferro também ajudou, alguns anos depois; e a visão, ainda fresca, da Primavera de Praga -- os tanques do Pacto de Varsóvia contra o povo nas ruas de Praga (o Dubcek é outro dos meus heróis, também já o escrevi, mais de uma vez).
Acontecimento magno da história do século XX, quem o duvida? Revolução mais do que justificada numa autocracia? Igualmente (a execução vil de toda a família imperial não faz esquecer os crimes de Nicolau II e do seu círculo). Que sem ela, as condições de vida dos trabalhadores ocidentais teria sido outra? Parece mais do que evidente. Nunca saberemos que caminho seguiria a Rússia sem a Revolução de Outubro, com Nicolau II ou com Kerensky. Sabemos que Lénin e Trótski tomaram e consolidaram o poder que a Rússia Branca não estava disposta a permitir, tendo, em simultâneo desbaratado os anarquistas de Nestor Makno e outros, nada dispostos a deixarem-se manietar pelos comunistas autoritários, numa velha contenda que vinha do século anterior. E sabemos, também, que a União Soviética, criada em 1922, é uma configuração de Stálin após a eliminação interna dos inimigos, reais ou supostos. É Stálin que torna a Rússia uma superpotência e é com a sua morte, em 1953, que se inicia o declínio. Krushtchev é uma válvula de escape; Brejnev, a sedimentação do estado totalitário e um novo desenvolvimento do imperialismo soviético em taco-a-taco com o americano: Vietname, Iémen do Sul, Angola, Afeganistão, cada um usando(-se) (d)os seus peões. Depois da grotesca parada de senectude ao mais alto nível (Andropov, Tchernenko), Gorbachev foi o homem certo na altura (im)própria. A circunstância de a queda da União Soviética, desmoronando-se de podre, ter ocorrido praticamente sem baixas, é um milagre bem palpável que a Humanidade deve a Gorbachev. Ieltsin (um bebedolas, provavelmente comprado pelos americanos), e Putin, um político frio e superiormente inteligente (muito mais do que gostaria o imperialismo americano -- imperialismo de rapina, como é condição de todos os imperialismos) -- (Ieltisn e Putin) são já protagonistas de outra realidade, que nem por isso deixa de ser herdeira da finada URSS, tal como esta, quando necessário, foi buscar o substrato à alma da Mãe Rússia.       

6 comentários:

Jaime Santos disse...

Um excelente resumo, mas note a gralha da repetição do nome de Putin (era Ieltsin que era alcoólico e não Putin, como é óbvio). Mau grado o carácter sagaz de Putin, sem dúvida, este vem na longa linha de homens fortes que governaram a Rússia, que não viveu um dia que fosse em liberdade, como notava bem o Miguel Sousa Tavares na SIC esta semana.

Gorbatchev permitiu que o império colapsasse quase sem ruído, mas a sua gestão económica foi francamente desastrosa (ouvi uma vez um excelente testemunho do social-democrata alemão Egon Bahr sobre isso), mesmo se o desastre só se consumou quando Ieltsin deu rédea livre aos liberais que aplicaram a receita do FMI sem qualquer peso na consciência (a queda dos preços do petróleo nos anos 90 também não ajudou). De qualquer maneira, o sistema estava completamente corroído de alto a baixo em 1985... Ando a tentar arranjar o livro do Todd, 'A queda final' que já tinha previsto que a URSS ia colapsar em 1976 com base na análise de estatísticas oficiais publicadas (ou que se deixaram de publicar).

O que me espanta naquelas almas que ainda defendem o estatismo soviético, é elas não perceberem que tinha que dar asneira por dois motivos: pela constituição de uma burocracia vermelha e leninista (já o Bakunine chamava atenção para isso) e pelo facto do sistema soviético só copiar do Capitalismo aquilo que ele tem de pior, ou seja o Monopólio...

R. disse...

Obrigado, já emendei.

Ainda me lembro do Aganbegyan ter introduzido o conceito da emulação.

Esse é o principal problema (ou um dos principais) do sistema, o da funcionalização da acção política, deixando rapidamente de ser política para passar a interesse; e com essa perversão, não há nobres ideais que aguentem...

Jaime Santos disse...

Sabe, eu não acho que o leninismo seja só uma degenerescência do Marxismo. O problema desde logo é que este, embora providencie um conjunto de conceitos essenciais para a análise de qualquer sistema político (as relações de poder, a natureza da moral como um mecanismo de perpetuação do sistema, o carácter intemporal das lutas de classe, etc) proclama a existência de uma teleologia para a História que efetivamente nega a liberdade de ação e de escolha na política.

Se o Socialismo é 'científico', opor-se a ele é uma atitude irracional. As doutrinas oriundas do Liberalismo, por outro lado, não proclamam o carácter infalível da ação humana, e por essa mesma razão, além da defesa do pluralismo, até como meio de exploração permanente da melhores soluções políticas para um dado momento (o liberalismo bebe no empirismo anglo-saxónico), instituem um conjunto de mecanismos de verificação da ação dos agentes políticos ('the price of liberty is eternal vigilance', se quiser).

Ou seja, o problema não está apenas na natureza humana dos agentes políticos, está mesmo na filosofia subjacente à proposta marxista...

Rui Luís Lima disse...

Um magnifico texto, com uma análise que subscrevo. Hoje passa uma mini-série magnifica no canal Arte, intitulada "Un Train pour Petrogado" onde Ben Kingsley interpreta a figura de Lenin (passou na RTP à largos anos) e conta ainda com Leslie Caron e Dominique Sanda no elenco e oferece-nos a viagem de Lenin do exílio para a Rússia, com factos bem curiosos, como o de as autoridades alemãs apesar de o reconhecerem o terem deixado seguir viagem.
Muito bom dia!

R. disse...

Jaime, de acordo.

R. disse...

Obrigado Mr. Vertigo. Tenho há anos (décadas...) para ler o «Lenine em Zurique», do Soljenítisn, que, segundo dizem, trata muito bem o tema. Um abraço!