domingo, março 31, 2013

cinema de pai

Sem grandes oportunidades para ver outros em exibição, vou somando filminhos como o de hoje, o último da Dreamworks, «The Croods», de Kirk De Micco e Chris Sanders. Inventivo e divertido.


E, já agora, arquivo também o anterior, «Zambezia», produção sul-africana dirigida por Wayne Thornley, uma pedagógica metáfora da superação do apartheid.



quinta-feira, março 28, 2013

acordes nocturnos


não há mais destes lá para as bandas do psd?

Mas poderá o Schäuble ser tão estúpido?... Grande Silva Peneda!

tá bem, também digo qualquer coisa sobre o Sócrates

Para encurtar: o primarismo do culto (e anticulto) de personalidade dos que o apoiam e dos que se lhe opõem, como se política fosse esta pobreza de "gosto dele" e "não gosto dele". Um prós & contras em relação a José Sócrates, que só mostra como este país de futebóis e parapornografia dita cor-se-rosa é indigente. Que vergonha, que vergonha... Mas quando um programa de variedades como o do Marcelo Rebelo de Sousa tem a influência que tem, está tudo dito.
No entanto, é sempre útil voltar a ouvir a verdadeira história do chumbo do PEC4, orquestrada por Passos Coelho e seus mentores (Relvas e Marco António, "gente do piorio", como se lhes referiu Miguel Veiga no "Expresso" desta semana), condicionando os coitados do PC e do BE, a quem o PSD e o CDS devem agradecer; a merecida e justificada cacetada em Cavaco, mesmo assim respeitosa; o ter explicado que ser governante não é vir com cara de zombie anunciar 19% de desemprego para os próximos anos. Esta parte criou-me expectativa para os comentários políticos que vão seguir-se. Mas, interessa-me mais falar do carnaval desta semana, a propósito do caso: 


Um pirilau qualquer da JSD veio protestar. Que pateta, que pateta...

O presidente da mesa não sei do quê do CDS, o partido dos submarinos e dos sobreiros, disse parvoíces, o que não é de admirar;
Morais Sarmento, que foi braço direito de Durão Barroso (e de Santana Lopes), foi grosseiro, o que não é de admirar;
Vasco Graça Moura, autor que admiro e a quem estou grato pela luta contra o aborto ortográfico, em reflexo pavloviano, disse que a vinda de Sócrates iria baixar o nível do comentário, esquecendo-se dessa nulidade de vocabulário reduzido que dá pelo nome de Marques Mendes.

terça-feira, março 26, 2013

O Vale do Riff - Lily Allen, «Not Fair».


MODERATO do Concerto para Violeta de Béla bartók


Concerto póstumo e inacabado, finalizado pelo discípulo de Béla Bartók, Tibor Serly, tal como o Concerto para piano #3. Pertencem ao período americano do enorme compositor húngaro, tal como o inolvidável Concerto para Orquestra, cuja vigor também aqui se reconhece. A um tempo melancólico e fogoso, não parece ter saído do génio de alguém que, desenraizado e muito doente, estaria certamente em profundo abatimento.
Em baixo, Jaroslav Karlovský com a Orquestra Filarmónica Checa, dirigida por Karel Ancerl.
A seguir, os primeiros 9'57'' por Luca Ranieri com a Orquestra Sinfónica da RAI, dirigida pelo arménio George Pehlivanian, que já tive a sorte de ver e ouvir. 




segunda-feira, março 25, 2013

Na morte de Torquato da Luz

poeta de ofício diário, dois poemas seus neste blogue.
(e mais, neste)

Nós e a Europa

     Seria importante, agora mais do que nunca, que tomássemos para nós, e sem esperarmos pelos outros, o desafio de pôr a Europa nos eixos. Sem esperarmos pelos outros, porque os outros nada farão por nós -- como nós nada faremos por eles. É assim, o egoísmo dos estados...
     Há um presidente da Comissão Europeia português submisso aos ditames da Alemanha, coadjuvada por holandas outras finlândias. Há um presidente da República apagado que desde o início da crise que nos assola deveria ter chamado a si uma acção diplomática activa e proactiva nas diversas chancelarias europeias (de preferência com colaboração do Governo; dispensando-a, se houvesse obstáculos), em vez de limitar-se a visitas de charme à Finlândia, e que ainda está a tempo de o fazer, se quiser justificar a própria existência e terminar o seu mandato fazendo esquecer que é o pior presidente que conheceu a III República, e cuja acção, com raras se excepções, se caracterizou ora pela baixa política ora pela mais embaraçosa irrelevância. Há um Executivo servil que, em estado de calamidade económica e social, deveria evitar a postura de governo de principado decorativo ou de república desestruturada do antigo bloco soviético e assumir-se como um dos estados mais antigos da Europa, contribuinte líquido cultural para este continente, e orgulhoso desses pergaminhos -- como aliás, o negregado Sócrates fez questão de dizer ao lado da chancelerina Merkel.
      Nunca como agora foi tão importante a CPLP e a nossa situação nela, porque dela depende a afirmação do nosso peso na Europa -- influência que teríamos se a soubéssemos potenciar.
    Todos quantos me conhecem sabem que nada tenho de nacionalista, que sou europeísta, que sou federalista. Mas, como cidadão português, em primeiro lugar, não posso tolerar estas atitudes germânicas e afins e a mansidão portuguesa, não apenas em nome de todos os nossos séculos de história e cultura, mas em nome da democracia e da própria ideia de Europa, pervertida pelo abuso alemão e pela fraqueza dos governos da Europa do Sul.

sexta-feira, março 22, 2013

Julio Dinis: do amor filial


[Papá]

     Nesta ocasião em que o meu futuro se fixou, não posso deixar de me recordar do muito que devo ao Papá pelos sacrifícios feitos por mim.
     [...] Meus irmãos foram privados, não sei por que vistas providenciais, de colherem neste mundo os frutos da esmerada educação que lhes dera. Esse mesmo poder, que os sacrificou tão novos, parece ter-me reservado como que para realizar em mim a recompensa que lhe merecia a resignação do Papá.
     Alegra-me esta ideia e anima-me a acreditar que não me faltará a vida e a saúde para poder cumprir essa missão talvez providencial.
     Creia-me que tenho sentimentos para avaliar todos os seus sacrifícios e para compreender o alcance da delicadeza com que procurava não mos fazer sentir.
     Neste dia, um dos mais solenes de toda a minha vida, permita-me que cumpra com o meu primeiro dever beijando-lhe respeitosamente a mão.

[a seu pai,  informando da nomeação para a Escola Médica do Porto,
Felgueiras, 24 de Julho de 1865]

Júlio Dinis, Cartas e Esboços Literários, Porto, Livraria Civilização, 1979.
editor: Egas Moniz

Para o fim do Verão daquele ano vivíamos numa aldeia que, para lá do rio e da planície, confrontava as montanhas


Para o fim do Verão daquele ano vivíamos numa aldeia que, para lá do rio e da planície, confrontava as montanhas. No leito do rio havia seixos e pedregulhos secos e brancos ao sol e a água clara corria suavemente pelos canais. Passavam tropas em frente da casa e desciam a estrada, e a poeirada que levantavam cobria as folhas das árvores. Os troncos das árvores estavam também cobertos de pó e as folhas caíram cedo naquele ano e víamos as tropas marchando pela estrada fora e o pó que se levantava e as folhas levantadas pela brisa caíam sobre os soldados em marcha e depois a estrada deserta e branca sem nada além das folhas.

Início de  O Adeus às Armas  (1929), de Ernest Hemingway, trad. Adolfo casais Monteiro, Lisboa, Editora ulisseia, s.d. 

caracteres móveis - Mark Twain

Sou redactor de jornais há catorze anos e nunca ninguém me disse que era preciso saber-se qualquer coisa para se ser redactor de um jornal!

in Dois Americanos na Itália (trad. César de Frias)

quinta-feira, março 21, 2013

Camilo Castelo Branco: "o q me espanta é viver"


[Ex.mº Sn.or]

Não ha que esperar na velhice quando a mocid.e foi desbaratada, contrahindo emprestimos adiantados ás forças da vida porvindoura. Não me admiro deste esfacellamento: o q me espanta é viver.

[a Tomás Norton, S. Miguel de Ceide,  7 de Novembro de 1884]

Doze Cartas Inéditas de Camilo Castelo Branco, Lisboa, Portugália Editora, 1964.  
editor: Luís Norton

quarta-feira, março 20, 2013

Então e o Durão Barroso não dá murros na mesa, ou só serve para ver as provas das armas de destruição maciça no Iraque?

Dizia eu ao meu amigo PCP que  desde que a Alemanha se reunificou, as coisas têm corrido mal. E calculo que lideranças como a do Zé Manel não ajudem.

Ferreira de Castro: "pratiquei um acto de solidariedade humana"


[Senhor Director]

[...] Aquilino Ribeiro e eu somos acusados de termos agredido, em romances nossos, o concelho de Montalegre.
Que eu saiba, o grande Aquilino nunca escreveu livro algum sobre aquela região e, no meu romance «Terra Fria», pratiquei um acto de solidariedade humana com o Povo de Barroso, então completamente abandonado ao seu destino. Uma solidariedade que me exigiu alguns sacrifícios, diga-se sobriamente de passagem.

[ao director do  Notícias de Chaves,  Dezembro de 1972] 

Diálogo com Ferreira de Castro, Braga, Editora Pax, 1973.
editor: Barroso da Fonte

terça-feira, março 19, 2013

Manuel Laranjeira: "só as nulidades morais se não estimam"


[Ex.mº Sr. ...]

É que nós vamos atravessando tempos difíceis, em que cada um que preze a sua honestidade sente precisão de definir a sua atitude, para não ser confundido com as biltres trivialidades que para aí fervilham. Só as nulidades morais se não estimam -- ...ou estimam-se no seu valor real, que é nenhum.

[a João de Barros,  Espinho, 3 de Maio de 1903]

cartas de Manuel Laranjeira, Lisboa, Relógio d'Água, s.d.
editor: ?

segunda-feira, março 18, 2013

não se acredita

A propósito do saque aos depósitos dos cipriotas, Pedro Correia fala dos assassinos do euro; isto é de tal maneira grave que eu diria que é quase um homicídio da UE por negligência grosseira.

domingo, março 17, 2013

Viana da Mota: humor de compositor


[Meu caro am.º]
Ia pois escrever-lhe para ali quando a M.ª da Graça me abalou todas as minhas suposições dizendo-me que lhe «parecia» que o seu «Quartel general» -- (-- gostava que me dissessem se há também um «Quartel tenente» ou um «Quartel sargento» e se não deveríamos dizer «Direcção general das Belas Artes --) era em Coimbra.

{a Fernando Lopes-Graça,  29 de Setembro de 1942]

in Fernando Lopes-Graça, Opúsculos (3), Lisboa, Editorial caminho, 1983.
(editor: FL-G)

O Vale do Riff - Crosby, Stills & Nash, «Helplessly Hoping»


Que espero eu do Papa?

     Ateu de raiz católica e cidadão interessado, obviamente que a eleição do Papa não poderia ser-me indiferente -- até por questões mais comezinhas e aparentemente de superfície como é todo o processo que a conduz, interessantíssimo de seguir.
     Digamos que que acompanhei o desenrolar dos acontecimentos dos últimos dias com uma expectativa idêntica à que me sucede, por exemplo, com as eleições americanas. Sobre questões de fé e da dogmática da Igreja, em geral não tenho nada a dizer. Isto é: estou-me nas tintas para o assunto do lugar da mulher lá dentro ou o casamento gay; nem percebo como certos ateus vibram com isto: só está nas igrejas quem quer (falo, é claro, enquanto cidadão europeu, urbano e cosmopolita; a realidade pode ser muito diferente, mesmo em Portugal, em lugares perdidos para trás do sol-posto, em que existe uma determinada coerção social que inclusivamente ultrapassa a própria Igreja). Não me interessam nada, pois, as questões de modernidade no que diz respeito à Igreja. Por mim, podiam continuar a dizer missa em latim; era capaz de até dar lá uma saltada de vez em quando, só para ouvir aquela música...
     Internamente, espero do Papa Francisco uma repressão sem tréguas aos pedófilos e abusadores que existem na Igreja Católica. Espero dele uma acção decisiva e exemplar, sem a qual a sua autoridade enquanto pontífice e enquanto homem ficará reduzida a nada. Sendo uma acção que presumo árdua (aquilo deve estar minado), tem de estar ao seu alcance
     Do ponto de vista social, é diferente: a Igreja Católica é uma força, e portanto tem de ser seguida com atenção. Mas ao seu alcance já não estará a acção sobre o desgoverno do mundo; a pilhagem dos povos e dos recursos naturais pelas corporações. Aí a sua voz deverá latejar. Não que eu tenha grandes ilusões, não creio que lhe liguem alguma coisa. Ou tanto quanto ligaram à justa posição de João Paulo II, quando da criminosa guerra do Iraque. Mesmo assim: a obrigação deste papa é não esmorecer e ser a voz bem audível de todos os que não têm voz. Se tal acontecer, este pontificado terá valido a pena, e eu congratular-me-ei com isso.
     Entretanto, leio, com alívio, a reprodução de declarações de Adolfo Pérez Esquível, nobre figura dos Direitos Humanos, isentando o actual papa de cumplicidade com a repugnante ditadura argentina. Por outro lado, é grande o fluxo de informações sobre o passado recente de Jorge Bergoglio enquanto arcebispo de Buenos Aires. E essas notícias têm revelado um homem decentíssimo. É bom que assim seja, que figuras que, pelo posto que ocupam, a sua voz tenham ressonância à escala planetária, como Tenzin Gyatso, o Dalai Lama, ou Barack Obama.
     Decência e consequência, é o que espero do Papa Francisco.

Um livro de despedida


O Velho e o Mar, de Ernest Hemingway (1952) Relato pungente da luta do velho pelo último grande peixe. O respeito do homem pelo animal, possivelmente como sucede entre touro e toureiro. Como alguém notou: uma  metáfora do próprio acto de escrever. Um livro de despedida.

sábado, março 16, 2013

Antologia Improvável - Manuel da Fonseca


Horizonte
todo de roda
caiado de sol.
Ao meio
do cerro gretado,
esguia cabeça de cobra
olha assobios de lume
sobre espigas amarelas...
(...Campaniços degredados
na vastidão das seara
sonham bilhas de água fria!...)

Planície

Para sempre.


Para sempre. Aqui estou. É uma tarde de verão, está quente. Tarde de Agosto. Olho-a em volta, na sufocação do calor, na posse final do meu destino. E uma comoção abrupta -- sê calmo. Na aprendizagem serena do silêncio. Nada mais terás de aprender? Nada mais. Tu, e a vida que em ti foi acontecendo. E a que foi acontecendo aos outros. É a História que se diz? Abro a porta do quintal. É um portão desconjuntado, as dobradiças a despegarem-se. Há muito tempo já que aqui não vinhas. Sandra era da cidade, gostava da capital, detestava a vida da aldeia. Lá ficou.

Início de Para Sempre [1983], de Vergílio Ferreira, 11.ª ed., Venda Nova, Bertrand Editora, 1998.

THE LONE RHINOCEROS


Em The Acoustic Adrian Belew (1993), acústico e a solo. Humor triste do rinoceronte solitário, em que não se dá, nem podia, pela facilmente reconhecível guitarra dos King Crimson (é obra ser-se uma guitarra reconhecível na  banda que tem por mentor Robert Fripp).
Aqui em baixo, Nova Iorque, 2009, Belew guitarra um rino gemebundo.

Ferreira de Castro: "escreva-me sobre o Algarve"


     [..., meu prezado amigo]

     Se você num momento de melancolia tiver desejo de escrever, escreva-me sobre o Algarve, as suas praias, os seus caminhos. Eu amo tanto a província que vivo nela por imaginação, vivo-a por impressões alheias, quando, como agora, não a posso viver por impressões próprias.

[a Roberto Nobre, Lisboa, 19 de Setembro de 1922]

Ferreira de Castro / Roberto Nobre, Correspondência (1922-1969), Lisboa, Editorial Notícias e Câmara Municipal de Sintra, 1994
editor: Ricardo António Alves

sexta-feira, março 15, 2013

A SELVA como expressão das ideias libertárias de Ferreira de Castro (3)


De que forma poderemos enquadrar essa mundividência? Claramente através de um conjunto de ideias e de sensibilidades que dotara a totalidade da obra castriana de uma mensagem coerente e consistente de emancipação do Homem. Não se trata de um simples amálgama de sentimentos piedosos, vulgo «humanistas»; está para além disso, e tem uma designação bem definida na história das ideias políticas e sociais: chama-se anarquismo, e Ferreira de Castro foi um dos expoentes literários do século XX, em Portugal, dessa forma mais livre de encarar o mundo e a vida. Ela já aparece, ainda que inconscientemente, em Criminoso por Ambição (1916), através de uma pueril atmosfera de revolta e inadaptação do protagonista Simão Rafael dos Anjos (1), e é omnipresente, quase obsidiante no seu último livro, Os Fragmentos (1974), um volume que ele deixou cuidadosamente preparado para publicação.

(1) «Posfácio» a Emigrantes, edição comemorativa ilustrada por Júlio Pomar, Lisboa, Portugália Editora.

 Congresso Internacional A Selva 75 Anos -- Actas, Ossela, Centro de Estudos Ferreira de Castro, 2007

estampa CLXIV

Conrad Felixmüller, Operários a Regressar a Casa (1921)
Está em Berlim (colecção particular)

Sobre Ferreira de Castro #17 - campo e cidade, sonho e realidade


[do cap. I de A Lã e a Neve, 1947]

* Incipit: «Logo que as cabras e as ovelhas entestaram à corte, o «Piloto» deu por findo o seu trabalho.»

* Regressado do serviço militar, cumprido no CIAAC de Cascais, Horácio, pastor de Manteigas, é farejado, encontrado, saudado e requestado pelo velho companheiro, que o surpreende com Idalina. Só para o cão ele não mudou; para a noiva e para os pais, há algo de diferente: abertos os olhos noutras paragens, a pobreza da existência torna-se-lhe inaceitável. Mudar de vida, mudar a vida, deixar o pastoreio nas faldas da serra e empregar-se na fábrica, mesmo que em Manteigas, ou, quem sabe, na Covilhã, surge para o protagonista do romance como a única oportunidade de alguma vez levantar a cabeça, de fugir da mísera mesquinhez que preenche os dias dos pais e dos outros como eles.

* A cidade como factor de mudança. Não há, nem poderia haver, um bucolismo palerma que se conformasse com a vida rudimentar aldeã. E Castro sabe-o como ninguém, pois foi dela que saiu, aos 12 anos incompletos -- para algo ainda mais opressivo. Mas, para que não haja confusões, o escritor não rejeita o campo -- pelo contrário --, senão a pobreza que lhe subjaz no Portugal dos anos quarenta.

* A cidade é também factor de estranhamento: quem de lá vem, mudou; quem ficou, sente a mudança, sem que sinta, por sua vez, a imobilidade da vida que leva. Tal será sempre um factor de tensão.

 * Aos planos do pastor atravessa-se um compromisso financeiro, um empréstimo tomado pelos pais ao antigo patrão, na sua ausência, por motivos de força maior, sendo o trabalho de Horácio o garante da  liquidação, haja ou não -- presume,-se nesta fase do romance -- trabalho nos lanifícios.

* Problemática muito castriana, a dicotomia entre sonho e realidade, o homem aprisionado ao atavismo cultural, aos compromissos que se tomam; e, como sempre, alguém de mais teres & haveres ou uma convenção social, ou ambos, exercem pressão sobre quem pouco ou nada tem.

* Temos, para já, um problema posto, que irá complexificar-se à medida que a narrativa avança. E que narrativa! -- um dos grandes romances do século XX português e uma das obras maiores de Ferreira de Castro, significativamente o seu segundo livro mais traduzido, à frente do celebrado Emigrantes e atrás, naturalmente, de A Selva.

* Mais uma nota para a mestria do estilo, para o cuidado trabalho sobre a linguagem. Eis as casas pobres de Manteigas no limiar da noite:

     «Tinham começado a descer a congosta. Era uma rua estreitíssima, que cheirava a burros, a porcos e a fumo de ramos verdes. Dela partiam outras tortuosas vielas, que terminavam em pátios ou dobravam em cotovelos, cruzando-se, avançando para sombrios recantos, numa sugestão de labirinto. As casas, negregosas, velhentas, colavam-se umas às outras, com a parte inferior de granito escurecido pelo tempo e a parte cimeira com folhas de zinco enferrujadas a revestirem as paredes de taipa, mais baratas do que as de pedra. Este e aquele casebre exibiam apodrecidas varandas de madeira e outros, mais raros, umas escadas exteriores, coroadas por um patamarzito quadrado, logradoiro do mulheredo nas horas de paleio com as vizinhas. Algumas das portas e janelas estavam abertas e, atrás delas, pairava a rúbida claridade do fogo que, lá dentro, cozinhava a ceia. Figuras de homens, mulheres e crianças, as suas caras tocadas pelo fulgor do lume, andavam no acanhado espaço doméstico, cirandavam numa confusão de movimentos humanos e de trapos dependurados.»

Raul Brandão: "Eu gosto imenso de livros assim"


[Meu Ex.mo Amigo]

Li ontem dum fôlego o Verbo Escuro. Eu gosto imenso de livros assim, mas o seu, tão profundo e tão belo, há-de ser compreendido por poucos leitores.

[a Teixeira de Pascoais, Guimarães, 27 de Março de 1914]

Raul Brandão - Teixeira de Pascoaes, Correspondência, Lisboa, Quetzal Editores, 1994
editores: António Mateus Vilhena e Maria Emília Marques Mano

N


NARIZn. O derradeiro posto avançado da cara. Baseando-se no facto de os grandes conquistadores terem grandes narizes, Getius, cujos escritos são anteriores à idade do humor, chama ao nariz o órgão da opressão. Tem sido observado que os momentos de maior felicidade do nariz ocorrem quando este está metido nos assuntos de outras pessoas, o que leva alguns fisiologistas a inferir que o nariz é desprovido de olfacto. 
NASCIMENTO, n. O primeiro e o mais terrível de todos os desastres.
NATAL, n. Um dia assinalado e dedicado à gula, à embriaguez, ao sentimentalismo, à troca de presentes, ao aborrecimento público e ao mau comportamento privado.
NEPOTISMO, n. Nomear a própria avó para um cargo público, pelo bem do partido.
NEWTONIANO, n. Relativo a uma filosofia do universo inventada por Newton, que descobriu que uma maçã cai ao chão, embora não tenha sabido explicar porquê. Os seus sucessores e discípulos avançaram até ao ponto de nos conseguirem dizer quando é que ela cai.
NIRVANA, n. Na religião Budista, um estado de beatitude concedido aos sábios, sobretudo àqueles que são suficientemente sábios para o compreenderem.
NOIVA, n. Uma mulher com excelentes perspectivas de felicidade atrás de si.
NOVEMBRO, n. O décimo primeiro duodécimo de uma fadiga.

Ambrose BierceDicionário do Diabo, selecção e tradução de Rui Lopes, Lisboa, Tinta da China, 2006.

quinta-feira, março 14, 2013

O Vale do Riff - The Unthanks, «Sexy Sadie»


Alexandre Cabral: "tosca prosa prolixa"


[Exm.º Sr. ...]

     Não tem esta por fim dirigir a V. Ex.ª palavras aduladoras que o v/ espírito consistente e desempoeirado rejeita, nem tão-pouco patentear-lhe novamente a minha admiração pelo vosso talento, que no citado artiguelho em tosca prosa prolixa ficou bem impressa.

[a Ferreira de Castro,  Lisboa, 30 de Novembro de 1936, 
enviando um artigo sobre a sua obra]

Cartas de Alexandre Cabral para Ferreira de Castro, separata de Vária Escrita #6, Sintra, Câmara Municipal, 1999.
editor: Ricardo António Alves

O Granico, Isso, Arbelos...


O Granico, Isso, Arbelos... três pancadas retumbantes percutidas no palco do mundo, -- e o pano sobre para a representação de um dos episódios mais prodigiosos da História Universal.

Benoist-MéchinAlexandre Magno, trad. A. Guimarães, Porto, Lello & Irmão, 1980.

quarta-feira, março 13, 2013

a democratização do regime


MANIFESTO PELA DEMOCRATIZAÇÃO DO REGIME -- Eis-nos chegados à necessidade expressa de "democratizar o regime", o que seria um contra-senso num sistema formalmente democrático. 

O PS e o PSD são, através das juventudes partidárias escolas de malandrins, oportunistas & especialistas no manobrismo, como há muitos anos escreve Pacheco Pereira; e são também uma desavergonhada rede de caciquismo por esse país fora. As pessoas de bem que neles militam ou são afastadas ou se acomodam. Neste momento, o PS e o PSD são um cancro e um perigo para a sobrevivência de uma sociedade democrática e livre. O CDS é a mesma coisa, mas em mais pequeno, à medida da sua representatividade. O PCP é uma seita , uma igreja sem deus e outra escola de maus costumes políticos, pela funcionalização do "pessoal" político e pelo enquadramento (melhor seria dizer, pelo encarneiramento) dos militantes. (Sem menosprezo pelas pessoas seriíssimas que nele estão, uns já sem ânimo para mudar, reconhecido o embuste, outros demasiado crédulos ou ingénuos para com as "virtualidades" duma doutrina e duma prática que, em última análise, descamba em aberrações como a Coreia do Norte). O Bloco, até agora, se foi importante para arejar, politicamente pode ser tudo -- o que significa que, até ver, é nada.
Este sobressalto político não só me parece muito saudável, como a provavelmente última possibilidade de contribuir para reformar um sistema que apodreceu, antes que venha um qualquer Gomes da Costa pôr isto não ordem (algo que só ainda não foi tentado, em minha opinião, porque fazemos parte da União Europeia, também ela em risco.)

Oliveira Martins: "vibrei"


[Meu querido...]

     Vibrei, certamente, vibrei todo o dia hontem, lendo a sua primorosa obra. V. fez um milagre.

[a Luciano Cordeiro, 1894
referência às  Cartas, de atribuídas a Mariana Alcoforado]

in Soror Mariana Alcoforado, Cartas de Amor -- Ao Cavaleiro de Chamilly [1894], Porto, Editora Ausência, 2002.
editor: Luciano Cordeiro

António Botto, «Remorso»


O céu de súbito pôs-se negro e o vento à solta, parecia querer derrubar montes, castelos e vidas. -- Eduardo, meu filho! gritou a mãe. E o pequeno que deixara de brincar, cego pela poeira e assustadíssimo pelo brusco desaparecimento da luz do sol, deitou a correr para casa. Batia-lhe de frente a ventania dificultando-lhe a corrida. Um remoinho de folhas secas ergueu-se, descompassado. Eduardo, chegou. -- Mas, vens a tremer, meu filho? -- Sim, minha mãe, tenho frio. E com efeito nessa manhã suavíssima de outono o vento fez-se cortante como nos dias baços, chuvosos, e doentios de Janeiro. Eduardo, a pouco e pouco, ia ficando tranquilo. Entretanto, o vento, numa lamúria desgrenhava as árvores, partindo-as, e a chuva, torrencial, dava-nos a impressão de alagar o Universo. Os relâmpagos iluminavam a terra e o céu. A casa estremecia e algumas telhas abalavam como flechas pelos ares. -- Não tenhas medo, meu filho. Deus protege o nosso ninho. Eduardo, então, desatou a chorar, e por mais que a mãe lhe perguntasse a causa daquele choro, não respondia, e sempre a chorar, lembrava-se, com certeza, do ninho de passarinhos que destruíra nessa manhã.

Os Contos de António Botto7.ª ed., Lisboa, Livraria Bertrand, s.d.

Antologia Improvável - Joaquim Namorado


Aqui é a ilha dos navios perdidos,
dos navios abalroados, afundados
nos naufrágios...
Esta é a ilha perdida nos mapas,
perdida no mar dos sargaços;
este é o mar das Tormentas,
das tormentas desta vida,
onde há só tempestades e agoiros;
o céu
é esta noite negra sem limites
onde não vive um astro, uma nuvem ou uma asa;
a terra é esta,
os cascos oscilantes
dos mil navios perdidos:
Naus da Índia,
barcos piratas de moiros,
fragatas e caravelas,
navios dos Corte-Reais
onde jazem insepultos
os heróis mais verdadeiros
e os sonhos mais colossais.
-- Nos mastros desmantelados
flutuam,
rotos e desbotados,
estandartes imperiais
e nos porões arrombados,
nos cofres de segredos inúteis,
dormem os tesoiros arrancados
a todos os orientes.

Não há grandeza que baste
quando a desgraça é tamanha!...


Aviso à Navegação / Novo Cancioneiro

Jaime Brasil: "o último dos últimos"


[Meus caros...]

A mim q. tão afastado ando dos cenáculos literários e q. nas galés do jornalismo sou o último dos últimos, sensibilizou-me a vossa gentil manifestação de camaradagem espiritual.

[a Ferreira de Castro e Eduardo e Eduardo Frias, 20 de  Junho de 1924,
agradecendo A Boca da Esfinge]

Cartas a Ferreira de Castro, Sintra, Câmara Municipal / Museu Ferreira de Castro e Instituto Português de Museus, 2006
editor: Ricardo António Alves

terça-feira, março 12, 2013

José da Cunha Brochado: da veneração


     O respeito que sempre tive e devo ter à pessoa e ao carácter de V. Ex.ª, me levou sempre à veneração de suas altas prendas pelo seguro caminho de uma pura e fiel contemplação, entendendo que, como V. Ex.ª é todo espírito e todo inteligência, mais se pagaria das respeitosas meditações da minha fé, que das intrometidas assistências da minha dignidade.
(duma carta a desconhecido, novo embaixador em Viena,
7 de Maio de 1696)

Cartas, Lisboa, Livraria Sá da Costa, 1944
editor: António Álvaro Dória

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     Em Berchtesgaden, certo dia, Hitler virou-se para mim e disse: «Como é que fico de suíças?» Speer riu-se e Hitler sentiu-se insultado. «Estou a falar muito a sério, Herr Speer», disse. «Julgo que devo ficar bem de suíças.» Goering, esse palhaço servil, concordou imediatamente, dizendo: «O Führer de suíças -- que excelente ideia!» Speer discordou de novo. Ele era, de facto, o único com integridade suficiente para dizer ao Führer quando precisava de cortar o cabelo. «Dá demasiado nas vistas», continuou Speer. «Suíças é o tipo de coisas que eu associo a Churchill.» Hitler ficou exasperado. Queria saber se Churchill estava a pensar deixar crescer suíças e, se assim fosse, quantas e quando. Himmler, a quem estavam suposta-[mente]

Woody AllenPara Acabar de Vez com a Cultura  (1966), trad. Jorge Leitão Ramos, 4.ª ed., Amadora, Livraria Bertrand, 1981, p. 25, ls. 1-12

Antologia Improvável - Mário Dionísio


OS HOMENS DA MINHA RUA DE CASAS DE MADEIRA

Os homens da minha rua de casas de madeira,
telhadas de folha velha,
usam sempre o chapéu atirado para os olhos.
Deslizam em silêncio, embuçados e tristes,
como quem vem de longe, como quem vai para longe...
A minha rua é longa,
com mil e uma pequeninas poças de água.
E tão estreita
que nunca o sol das ruas largas sem casa de madeira
a pôde visitar.
E os homens contam as poças.
E de olhos nas poças, nas pedras, nas poças,
deslizam em silêncio, embuçados e tristes,
como quem vem de longe, como quem vai para longe...

Porque usarão -- porquê? -- sempre o chapéu sobre os olhos,
os homens da minha rua de casas de madeira?

Poemas / Novo Cancioneiro

segunda-feira, março 11, 2013

Os demónios de Juncker

Jean-Claude Juncker à Der Spiegel: «os demónios não desapareceram, estão apenas adormecidos».  Refere-se o PM luxemburguês a uma futura guerra europeia. Nós sabemos; ele também e os líderes alemães e outros, também. 
Não me apetece nada fazer previsões negras. Se esta farsa europeia continuar, não tenho dúvidas de que as coisas vão ficar feias. A Alemanha será sempre quem terá mais a perder, partindo-se em pequeninos, outra vez, quiçá regressando aos principados...

olhò Espírito Santo

Estou a ver o Marcelo, que diz que o Conclave será inspirado pelo "Espírito Santo"; duas vezes e sem se rir.

NA SOMBRA


Este Jean Jacques Brousson, o provinciano astuto e erudito, «negro como um cacho de moscatel seco», que se deixou assimilar por Anatole France, durante seis anos de colaboração e de intimidade, vingou-se dos maus tratos que o mestre deu à sua paciência de investigador, publicando o livro Anatole en pantoufles.
Nesses seis anos, pode dizer-se que Brousson não viveu da sua própria vida, porque via pelos olhos de Anatole e falava pela sua boca.
Foi o caso mais flagrante de absorção que registam os anais literários.
 Napoleão dizia que não havia grandes homens para os seus criados de quarto.
Creio bem que o doméstico de Napoleão, ao vê-lo em ceroulas, lhe custasse a acreditar que aquele homenzinho ridículo pudesse governar o mundo.
No livro de Brousson vemos o divino Anatole reduzido a um pândego sensualão, facilmente gabarola das suas boas fortunas com mulheres, vaidoso e forreta.
Liberto pela morte do seu senhor, o escravo acentua a sua nova personalidade, despojando o ídolo das suas roupagens sumptuosas e apresentando-o, para gáudio dos amadores de escândalo, em trajes de andar por casa.
Mas o espírito de Anatole France tem uma luz tão intensa, que o sr. Brousson, deslumbrado, só pôde despi-lo na sombra... à traição.

Mercedes BlascoQuerem Saber?, Lisboa, J. Rodrigues & C.ª, 1928